Luta para garantir trabalho à população trans ganha verba destinada ao RS
A jornalista Gabryella Garcia imaginava o que lhe aconteceria no emprego quando revelasse ser uma mulher trans. Ciente das barreiras e das perdas que viriam, adiou ao máximo a transição. Embora desde a adolescência tivesse consciência de ser uma mulher trans, a realidade do preconceito e da discriminação na sociedade a fez adiar o momento, à base de terapia por muitos anos.
O plano era “fazer o nome” no mercado, se consolidar na carreira, obter alguma segurança, para só depois fazer o anúncio. Atuando num jornal de Santa Catarina, a ideia se desenvolvia bem até janeiro de 2020, tão bem que certo dia foi comunicada de que seria promovida de cargo. O esperado reconhecimento ao seu trabalho surgiu então como a oportunidade perfeita para avisar os colegas e a chefia. Confiante com a promoção, Gabryella foi até o departamento de recursos humanos do jornal e contou ser uma mulher trans.
Cerca de 1h30 depois estava demitida.
“Fui adiando para, de certa forma, fazer um nome no mercado para que a partir do momento em que eu comunicasse a transição, não fosse isso que fosse me tirar oportunidades. Eu tinha isso na minha cabeça, que já iam conhecer meu trabalho, iam gostar do meu trabalho, então seria uma segurança. Só que não foi isso que aconteceu. A partir do momento em que eles me promoveram, eu pensei: ‘Bom, se eles me promoveram, o trabalho é bem feito, eles gostam, então deve ser isso que deve importar’. Daí eu comuniquei no RH, e não demorou uma hora e meia para eles me demitirem. Então ficou muito claro que tudo o que eu já tinha na minha cabeça, todo o medo que já tinha, só se materializou”, conta Gabryella.
Pesquisa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) indica que 90% tem a prostituição como principal fonte de renda – ou de subsistência, como diz Gabryella –, apenas 4% tem emprego formal e 6% informal. Outro estudo mostra que mulheres trans e travestis, em média, são expulsas de casa com 13 anos.
“Uma pessoa com 13 anos que é expulsa de casa, como é que vai fazer para terminar os estudos? Ela não vai, vai dar um jeito de sobreviver ali na rua. Então aí começa toda a atuação dessas estruturas invisíveis. Primeiro você nega o ensino básico, o ensino médio, sem isso ela fica sem acesso ao ensino superior, a consequência disso é que fica sem acesso ao mercado de trabalho. Não tendo acesso ao mercado de trabalho, você não vai ter acesso ao sistema de saúde…”, afirma Gabryella, para quem o cenário de empregabilidade da população trans e travesti é de completo caos e abandono.
Para enfrentar esse drama, a jornalista diz que o sistema de cotas em empresas públicas e privadas é uma boa alternativa paliativa, pois o ideal seria não haver tal necessidade, seria todos terem acesso à educação e aos serviços de saúde, em condições de igualdade para disputar uma vaga de emprego.
“É um caminho paliativo, mas é uma forma de se avançar enquanto não chegamos em pé de igualdade, porque dando oportunidade de emprego, de trabalho, é que essas pessoas vão ter acesso a serviços de saúde, de educação para fazer uma especialização, então já é uma forma para começar a mudar essa realidade”, explica
Outra possibilidade de empregabilidade de pessoas trans e travestis, talvez um caminho até melhor, é por meio da capacitação profissional, proporcionando as “ferramentas” para atuar no mercado de trabalho. A ponderação feita por Gabryella é que essa alternativa pode não ser tão efetiva e imediata como o sistema de cotas.
“Esse caminho de ‘ferramentar’ acho até mais interessante porque a gente vai dar condições para essas pessoas, mas ele pode ser menos efetivo porque a gente vai capacitar essas pessoas só que ainda vão estar muito à mercê, vão depender ainda das empresas que podem barrar na questão do preconceito”, analisa.
Para suprir a carência de políticas públicas de emprego e renda para pessoas trans e travestis no Rio Grande do Sul, a deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL) articulou junto à Secretaria Estadual da Igualdade, Cidadania, Direitos Humanos e Assistência Social a execução de um projeto de R$ 250 mil, financiado com recursos de emendas destinadas pela parlamentar ao governo estadual.
Por meio de edital, serão financiadas cinco propostas de organizações da sociedade civil de até R$ 50 mil para o desenvolvimento de atividades que promovam o acesso de transexuais e travestis a emprego ou a qualificação. Os projetos serão propostos pelas entidades e poderão ser oficinas, treinamentos, atividades profissionalizantes, entre outras possibilidades.
“Com a pandemia da covid, as vulnerabilidades são acentuadas, as pessoas trans e travestis foram uma das populações mais impactadas. Elas já sofrem com o preconceito e discriminação que muitas vezes as impedem de ter acesso a educação, trabalho e renda. Durante a pandemia, os problemas ficaram ainda mais graves pelo aprofundamento da miséria. Tenho recebido relatos frequentes da sociedade civil de aumento de demanda por assistência social para essa população”, explica a deputada.
“A emenda pretende colaborar para dar condições de empregabilidade e um futuro melhor. Cada grupo vai submeter no edital um programa ou projeto pra atender a comunidade trans. Sabemos que essa área já sofre com desigualdade, preconceito e ausência de políticas públicas, e no governo do Bolsonaro foi paralisada qualquer política afirmativa necessária pra comunidade trans”, destaca.
A jornalista Gabryella Garcia elogia a emenda da deputada do PSOL por proporcionar condições de capacitação e, aos poucos, colaborar para transformar a realidade de anos de marginalização e exclusão. “Não vai ser de uma hora para outra que a gente vai mudar, então é um caminho, são as ferramentas que a gente tem nesse momento para quem sabe, daqui algum tempo, eu espero estar viva, para a gente chegar no ideal.”
A secretária estadual da Igualdade, Cidadania, Direitos Humanos e Assistência Social, Regina Becker, destaca que o preconceito e a discriminação que atinge trans e travestis é fruto de uma sociedade que ainda não aceita a diversidade e as individualidades de cada pessoa. “Isso faz com que sejam cada vez mais marginalizados, o que as colocam em situação de vulnerabilidade social”, avalia.
Regina destaca que o problema da empregabilidade começa pela exclusão social sofrida desde a adolescência. Tão logo passem pela transição, a rejeição já começa no ambiente escolar, na família e no grupo social. O preconceito estrutural, ela explica, causa uma reação em cadeia que começa no abandono da escola, o que dificulta na qualificação e na possibilidade de inserção no mercado de trabalho. Cerca de 2% dos travestis e transexuais chegam ao ensino superior e 70% concluem o ensino médio. “Podemos dizer que os travestis e transexuais são marginalizados desde sempre”, afirma.
A secretária tem a expectativa de que o Ministério da Mulher repasse em breve os recursos da emenda parlamentar de Melchionna, para então lançar os editais do projeto de empregabilidade para essa população. “É fundamental que o Estado formule, planeje e execute essas políticas públicas de combate à discriminação de gênero, de orientação sexual, e se posicione contra toda forma de violência, em prol da comunidade LGBT no Rio Grande do Sul.”
A experiência da promoção seguida de demissão mexeu com Gabryella. Após sair do jornal em que trabalhava em Santa Catarina, a jornalista tentou vaga em veículos de imprensa que haviam buscado sua contratação em outra época. Não teve sucesso. A realidade que sempre conheceu, mas nunca havia sentido na pele, agora estava ali presente.
Gabryella então se uniu à amiga Barbara Alves, que já atuava como consultora profissional, e juntas criaram o Transpor. O projeto é uma consultoria profissional gratuita exclusiva para profissionais transgêneros, travestis, não binários e intersexo. O trabalho consiste em orientar na elaboração de currículo de forma assertiva, em como usar o LinkedIn (incluindo informações sobre abordagem e os algoritmos da rede social), simular entrevista de emprego e de dinâmica de grupo, fazer a consultoria de carreira e network. Cada atendimento profissional dura entre 2 e 3 meses.
“O projeto surgiu juntando um propósito de vida que eu tenho, que é talvez ser voz dessa população, pelo lugar de privilégio que ocupo hoje, e também dar voz para essa população. É uma luta que tenho e não abro mão, vejo até como uma obrigação, a partir do lugar que ocupo hoje. Então surgiu muito desse propósito de vida com a expertise profissional da Barbara, que é uma mulher cis que acompanhou todo o meu processo”, explica Gabryella.
O Transpor completou um ano de atuação em julho de 2021. Nesse período, cerca de 220 pessoas passaram pelo projeto, que funciona todo on-line. Ao menos 30 delas conseguiram emprego depois da consultoria, número que a jornalista acredita que pode ser maior e apenas ainda não tem a confirmação.
Uma surpresa foi constatar que cerca de 50% das participantes cursam ou já cursaram o ensino superior. No último ciclo do projeto, as profissões mais procuradas foram nas áreas de tecnologia da informação (TI) e de comunicação. Gaby conta que durante a consultoria, as sessões em grupo são feitas com poucas pessoas, para viabilizar um atendimento humanizado e pessoalizado. Para obter resultados ainda mais significativos, parcerias com empresas começaram a ser feitas.
“A gente sabe que muitas empresas não estão preparadas para receber um profissional trans, que pode acabar sendo um ambiente violento, que não vai ser acolhedor, mas isso infelizmente a gente não tem como ter 100% de controle… Então há termos, para que a empresa receba uma palestra nossa de conscientização e sensibilização da realidade de pessoas trans, orientações de como tornar o ambiente acolhedor, inclusivo, a gente não abre mão disso nas parcerias”, explica Gabryella.
Além da consultoria profissional, a jornalista e a sócia alimentavam o sonho de oferecer capacitação por meio de cursos, mas sempre esbarravam na questão financeira. Agora, por meio de uma parceria, o projeto Transpor vai começar a ofertar curso de direção publicitária, com 25h de duração.
“É legal ver que, mesmo de forma tímida, está tendo uma movimentação para mudar essa realidade, seja através do projeto para incluir no senso, do senador Fabiano Contarato (Rede), seja essa emenda da Melchionna, ou até numa perspectiva mais local como foi em Nova Lima, onde foi sancionada uma lei. Então a gente vê uma movimentação, só que é muito difícil, já tem um sistema muito estruturado pra negar esse espaço, esses acessos. Daí a importância de um trabalho maravilhoso que é feito pelos movimentos sociais, organizações que tentam suprir essa lacuna”, analisa a jornalista, determinada a enfrentar as barreiras da sociedade e evitar que outras Gabys sejam demitidas apenas por serem quem são.
Créditos Sul21
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