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2020 será o ano em que LGBTs ocuparão mais espaço na política, avalia Renan Quinalha


Renan Quinalha é advogado e ativista em defesa dos direitos humanos | Foto: Juliano Vieira/Brasil de Fato
Gabriel Galli (*)
Quando Bolsonaro venceu as eleições, era generalizada a ideia de que teríamos uma grande perseguição às pessoas LGBTs e outras minorias em direitos. Passado um ano de um dos governos mais autoritários e antidemocráticos das últimas décadas, muitas das nossas expectativas negativas não se confirmaram, não por falta de vontade de Bolsonaro, mas pelos sucessivos escândalos, falta de habilidade política e, principalmente, pela resistência das vozes que lutam por direitos humanos. Já outras previsões, principalmente aquelas envolvendo o desmonte de políticas públicas, aconteceram exatamente como previmos, ou até mesmo pior. Foi atendendo a um pedido meu para conversar sobre esse cenário complexo, avaliar as questões envolvendo gênero e sexualidade no primeiro ano de governo Bolsonaro e projetar 2020, que o advogado e ativista em direitos humanos Renan Quinalha me recebeu em sua casa para conversar em São Paulo. 

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Para Quinalha, as leituras catastróficas feitas no começo do ano não se confirmaram e Bolsonaro obrigou certos setores da sociedade a se posicionarem contra o preconceito. Ao mesmo tempo, ele identifica que o movimento LGBT passa por um processo de reinvenção, tenta se livrar do derrotismo e que 2020 será um ano de grande crescimento de candidaturas LGBTs lutando por espaços nos legislativos municipais. Se em 2018 terminamos com o gosto amargo da derrota, 2019 pode ser entendido como um ano em que terminou melhor do que começou.
Gabriel Galli – Quando Bolsonaro se elegeu, havia uma grande expectativa por parte da esquerda de que pudesse haver um fechamento muito brusco do regime político e perseguição intensa a LGBTs. Passado o primeiro ano, como você avalia o governo nessas questões? 
Eu avaliei em janeiro, meio no calor dos acontecimentos, que o pior já estava feito e acho que isso se confirmou. A eleição do Bolsonaro já era o coroamento de um processo de crescimento e naturalização da violência contra LGBTs. A democracia brasileira já vinha num processo de “desdemocratização” e de crescimento do autoritarismo bastante fortes desde 2016. Houve o projeto de teto de gastos do Temer em 2017, com uma série de outras medidas que também vinham fechando os espaços de participação de controle democrático do Estado. Bolsonaro, no fundo, já era um sintoma dessa desqualificação do debate público e da desvalorização do discurso democrático de respeito aos direitos humanos. Passando um ano, é possível ver retrocessos muito flagrantes e muito evidentes em diversas áreas, sobretudo em áreas mais sensíveis, em que o Executivo tem a prerrogativa de capitanear, alterar e revogar as políticas públicas, como nas áreas de saúde, educação e assistência. Ao mesmo tempo, por outro lado, certos direitos LGBTs que são consagrados por legislações locais ou por decisões judiciais, em especial do Supremo Tribunal Federal, se mantiveram mais consolidados. Inclusive nós tivemos, e isso ninguém previa, a criminalização da LGBTfobia sob o governo Bolsonaro. Essa é uma demanda histórica do movimento, de mais de 40 anos, que aparece desde os primeiros documentos da organização do movimento LGBT no Brasil e estava parada lá no STF já fazia mais de seis ou sete anos. Isso me pareceu bastante sintomático da maneira como, na democracia brasileira, por mais frágil e fragilizada que ela esteja, há algumas instituições ainda operando em temas que permitem certos contrapesos e freios nas questões envolvendo direitos humanos. É só ver o debate sobre gênero nas escolas e a maneira como o STF tem reagido à questão da liberdade de expressão dentro das universidades, por exemplo. 
Os planos e intenções do Governo Bolsonaro, se fossem adiante, seriam muito mais dramáticos do que o que a gente está vendo hoje. Não que não seja dramático, principalmente na área de políticas de saúde para HIV/Aids, em que se tentou desmontar o departamento, que de resto também passa por certos cortes orçamentários. A mesma coisa em relação à educação, que afeta bastante a as políticas públicas para a população LGBT, mas [os desmontes] vêm acontecendo desde o último mandato da Dilma, em que houve um giro de ajuste fiscal. Aquilo já vem acontecendo com Temer, se agrava com o teto de gastos e Bolsonaro dá continuidade com um programa extremamente neoliberal. A diferença, me parece, é que o governo Bolsonaro “superideologiza” os cortes e tenta passar a ideia de que é resultado da balbúrdia, ou que vai cortar o edital para filmes por que é LGBT, ou seja, tenta agradar a uma base política dele bastante conservadora. 
Mas há também um movimento organizado constituído. O movimento LGBT nunca foi tão plural, tão diverso e tão capilarizado como é hoje. Há reações importantes desde a época das eleições, o que deixou um caldo de organização e resistência que se seguiu. É um movimento que está se repensando, por que tem menos espaços institucionais. O movimento estava muito dependente do Estado, muito inserido em determinados espaços e acostumado a um modo de fazer advocacy e lobby. Agora se vê que num governo de extrema direita isso não é possível da mesma maneira, como era feito em governos de direita civilizada ou de centro-esquerda.
As leituras mais catastrofistas não se confirmaram, ainda bem. Não por falta de vontade do governo, mas por ter encontrado bloqueios. Certas instituições, mesmo que combalidas, ainda operam pela existência da própria pressão da sociedade civil organizada e de mandatos parlamentares. O PSOL é um exemplo em vários mandatos e de crescimento da bancada. Aqui em São Paulo, tivemos a Érica Malunguinho, por exemplo. Temos experiências super interessantes que mostram novas lideranças surgindo, se expressando e ocupando espaços importantes em redes sociais, em canais diferentes de comunicação e na própria política institucional. 
A gente precisa considerar essas tensões e ambiguidades nessas leituras. Mesmo os governos progressistas que tivemos, nesse ciclo dos governos do PT, levaram a questão LGBT em banho maria, na margem da agenda política, na perspectiva de uma negociação com setores da bancada fundamentalista religiosa. Era tudo rifado, a própria história do “kit gay” foi uma questão que surgiu durante a época do governo Dilma Rousseff em 2011. Portanto, quando Bolsonaro bota a questão LGBT no centro da agenda política, ele obriga também pessoas e instituições a se posicionarem.
Gabriel Galli – Talvez um dos episódios mais importantes de 2019 tenha sido a criminalização da LGBTfobia, que não era esperada. Você avalia que esse foi um processo mais de marcação de posição do STF perante o governo ou algo que demonstra a força dos movimentos sociais?
Sem dúvida eu acho que foi um episódio bastante importante e que era muito incerto. Pouquíssimas agendas e casos ocuparam tanto as sessões do STF. Evidente que havia uma série de disputas internas. Acho que há muitas causas possíveis por detrás de tudo isso. Há sim um movimento crescente de organização da sociedade civil, do movimento LGBT organizado em particular, que aprendeu a fazer política de uma maneira mais institucionalizada e elaborou melhor sua linguagem sobre a forma do Direito. As ONGs começaram a trabalhar mais nessa chave, como vários outros movimentos sociais que viram no Supremo um lugar importante de avanço. Essas organizações mobilizaram estratégias do passado, inclusive. A ideia de equiparar a discriminação sexual à discriminação racial aparece em documentos do GGB de 1981, ou seja, isso é bastante antigo, inclusive nessa forma de colar na luta antirracismo. Ao mesmo tempo, essa ideia do direito penal enquanto instrumento é bastante problemática e criticada, mas isso foi tomando força também por conta do aumento de um certo populismo penal que a gente vive.
Tem esse acúmulo de forças [dos movimentos], mas para entender o processo é fundamental ver a maneira como o STF decidiu fazer isso. A pauta é estabelecida de maneira muito arbitrária pelo presidente da Corte. Evidentemente, ele lida com a pressão de seus pares e da própria sociedade, o Judiciário não decide a frio. O Supremo já tinha dado certos recados sobre as questões de moralidade dos direitos LGBT, consolidando uma jurisprudência garantista nesse sentido. Acho que o Supremo quis passar um recado pautando o tema, mas o [Dias] Toffoli [presidente do STF], no meio do processo, tenta não finalizar o julgamento. Ele tenta fazer uma manobra dizendo que não era necessário terminar o voto, já que o Senado protocolou um pedido dizendo que já estava tramitando uma proposta de Projeto de Lei específico que já contemplaria essa equiparação, mas com excludente para a questão dos templos. Enfim, um projeto costurado com a bancada fundamentalista. Se tentou travar, mas já tinha tomado dimensão. O relator estava tão engajado em levar adiante, era o decano, que também foi fundamental, já que o ministro tem uma certa projeção e tem uma boa aceitação entre os pares e legitimidade. Então o processo fica pautado, se consegue finalizar esse julgamento desagradando setores do próprio governo Bolsonaro, que se pronunciou contrariamente. Houve uma certa disputa de lugar na institucionalidade e o STF quis demarcar uma posição importante que já havia acontecido em outros momentos com a aceitação de pautas importantes para o movimento LGBT. O movimento tinha três grandes agendas nas últimas décadas: o casamento, a identidade de gênero e a criminalização da LGBTfobia, e todas passaram pelo STF.
Gabriel Galli – Este processo de freio as ações de Bolsonaro promovidos pelo STF e por grupos de parlamentares no Congresso Nacional poderia ser um sinal de que nossa democracia está mais sólida ou madura? 
É uma excelente questão. É difícil ler esses fenômenos isoladamente. A democracia brasileira vai muito mal. Desde 2013 começam a haver certos testes. Eu não leio as manifestações de 2013 como já de direita, mas acho que é um processo de disputa vital em que se desorganizam certas formas de fazer política em uma crise da democracia liberal brasileira, que de resto é uma crise não só brasileira, mas aconteceu em vários outros lugares do mundo. De um lado é a crise de um modelo também de governabilidade bastante problemático, que sempre foi criticado desde o ponto de vista mais de esquerda. Essa lógica de uma governabilidade foi operada por governos do PT, ainda que conseguindo mais ganhos sociais garantindo mais direitos ou atenuar certas desigualdades. Mas no fundo, operou de uma mesma maneira e o golpe de 2016 mostrou esse processo. Os setores que vão para as ruas [em 2013] mostram que há uma dificuldade muito grande da política em processar as demandas da sociedade brasileira, para o bem e para o mal. Desde então, a democracia tem sofrido uma série de reveses importantes e a eleição de Bolsonaro é o mais significativo deles, já que é um candidato que tem um discurso autoritário antidemocrático que ganha a eleição pela via eleitoral.
O fato de ter candidaturas, pessoas eleitas LGBTs e lideranças populares que ocuparam espaços e que têm disputado a política, além desses direitos que vão sendo conquistados, não mostra tanto uma maturidade da democracia, porque ela tem um processo de reinvenção ainda em disputa, mas a força desses setores populares e uma capacidade de organização e mobilização importantes. Refletem um pouco de uma educação política que veio com processo de redemocratização. Tem um certo acúmulo de lutas importantes aí que estão sendo cultivadas e que estão florescendo agora apesar do contexto e da fragilidade. É cedo ainda para dar um diagnóstico mais fechado. 
Essa ascensão da extrema direita também é um pouco fruto das próprias conquistas e mudanças sociais que foram promovidas por esses movimentos nas últimas décadas. Muitos autores têm apontado como um backlash, uma reação conservadora em curso, e ao caracterizar dessa maneira reconhecemos que houve uma ação importante de transformação e mudança de lugares sociais e hierarquias de direitos conquistados pelos movimentos negro, feminista, LGBT e outros. 
Então há essas contradições, mas, neste momento, entendo que estamos perdendo essa disputa para a direita. Ao mesmo tempo, não acho que eles dão soluções para as crises da economia e da democracia. E tem esse acúmulo anterior também de organização de lutas que eu acho que vão disputando um pouco o processo, tanto que terminamos 2019 melhor do que terminou 2018. Tenho essa impressão de que a gente tem se organizado melhor, pensado melhor como fazer oposição e saído de uma lógica só derrotista, que marcou o fim do ano com as eleições. Neste sentido, nós terminamos o ano menos pior que o ano passado.
Gabriel Galli – O que você acha que a esquerda e os movimentos sociais aprenderam com nesse processo?
Eu acho que a gente, e digo num espectro amplo de esquerda, estava numa certa paralisia. Em 2013, houve grandes manifestações da esquerda, depois disso vimos mais manifestações à direita, que tomaram as ruas, e a esquerda não ocupa mais esse espaço com expressão, exceto em atos durante o período eleitoral. Os movimentos LGBTs continuaram sempre fazendo grandes atos e paradas, mas numa dinâmica própria, diferente dos atos políticos no sentido mais estrito. Daí nas eleições, houve um esforço para tentar disputar o segundo turno. Depois o negócio arrefece muito, já que foi uma derrota acachapante. Todo mundo deu mais energia do que tinha e tem a questão até psíquica mesmo, subjetiva. As pessoas ficaram muito muito mal e isso afetou muito com relações familiares de amizade. Foi um dos processos eleitorais mais traumáticos da democracia brasileira desde 1988 e de fato envolveu uma polarização muito grande. Acho que isso deu uma certa ressaca. Então começamos o ano com pouca clareza e com muitas leituras diferentes sobre como seria este governo, inclusive sobre qual o modo de fazer oposição tanto parlamentar quanto nas ruas. O governo foi mostrando os próprios limites, com pessoas despreparadas em geral, com falta de articulação política. O centro do sistema político brasileiro, por pior que seja, também foi mostrando sua força. Todo mundo achou que o Centrão estava morto, que não ia mais dar sinal, mas eu acho que ele também conseguiu se metamorfosear e ocupar um papel importante. No campo da esquerda, o Lula preso atrapalhou muito a construção de novas pautas, ainda mais depois da Vaza Jato, em que ficou muito claro que havia uma perseguição política e judicial contra ele. A pauta do Lula Livre era inescapável até esse momento, mas agora com ele solto, permite uma rediscussão. Pensar se a estratégia é essa mesmo de fazer negociação e colocar a Marta [Suplicy] numa chapa em São Paulo, por exemplo. É importante fazer a crítica a esse tipo de escolha e construir alternativas. Isso libera mais energia criadora na política, a possibilidade de ousar mais, radicalizar, e pensar outras estratégias, outras coligações e alianças. Há vários exemplos de candidaturas coletivas que já têm sido anunciadas e pensadas, em modelos parecidos como o da Muitas [em Minas Gerais] e em São Paulo [com a Bancada Ativista] também. 
Acho que tem uma série de experiências de renovação importantes que estão aproveitando um pouco essa janela de oportunidade. Os movimentos e uma parcela grande do ativismo político em várias áreas estão conseguindo respirar de novo e pensar novas estratégias, racionalizar mais. Ainda é muito incipiente, afinal ninguém toma porrada há vários anos e acorda com uma estratégia clara de país, mas há coisas muito interessantes acontecendo em vários níveis. Sinto nas pessoas e nos movimentos que há uma perspectiva de que esse ano está terminando melhor do que o ano passado.
Gabriel Galli – Qual será o papel das pessoas LGBTs no próximo processo eleitoral?
 A comunidade LGBT é muito diversa, uma parte dela teve um papel fundamental na eleição do Bolsonaro, inclusive. É difícil a gente homogeneizar a existência de uma certa identidade LGBT. Há uma série de clivagens, de divisões e tensões. Mas eu creio que esse processo eleitoral de 2018 serviu para despertar ou para reforçar uma consciência política em muitas pessoas LGBTs que se colocaram contrários à eleição de Bolsonaro e tem fortemente criticado o governo. Isso é muito claro em redes sociais e comunidades LGBT. Até em aplicativos LGBT de pegação, que as pessoas ainda têm #EleNão nas suas descrições, ainda falam disso, ou seja, são espaços impensáveis de atuação de um discurso político eleitoral e as coisas ainda estão presentes. Há um caldo cultural político importante que ficou desse processo. 
O movimento [LGBT] ainda está muito devagar, enquanto movimento mais institucionalizado, mas todas essas arenas e ativismo têm se renovado. Desde festas de periferia LGBT, até canais de YouTube e pessoas produzindo conteúdos diversos, dialogando com a geração mais nova, que também tem falado de vários tipos de sistemas de vida, como fruto dos avanços que já se conseguiram nesse período. Tem um florescimento muito grande. Artistas LGBTs ocupando um papel superimportante, de Pabllo Vittar a Linn da Quebrada. Tem uma visibilidade cultural também muito grande em novelas, em várias frentes da cultura e acho que tudo isso mostra muita força e um certo protagonismo da comunidade LGBT mais comprometida com esses valores de transformação, de liberdade e justiça. Essas pessoas tendem a assumir cargos públicos, já que há uma subrepresentação muito grande no sistema político. Então acho que em 2020 vamos seguir uma tendência que já vinha crescendo nas eleições anteriores: o Brasil terá muito mais pessoas LGBTs, principalmente trans, candidatas, deve haver a eleição dessas pessoas e várias delas ocupando lugares nos legislativos municipais. É evidente que é preciso que se brigue dentro dos partidos por mais espaço efetivo, para que não sejam só aquelas candidaturas propagandeadas como “diversidade” e que não têm espaço efetivamente eleitoral, viabilidade, chances e recursos dos próprios partidos. Nessas eleições municipais o tema LGBT está no centro da agenda. Tanto pela maturação de uma cultura LGBT, que tem sido cada vez mais reforçada com uma identidade mais forte, mas por conta também desses ataques, que de alguma maneira viabiliza e incentiva certas pessoas a terem uma presença maior na política, que pode se refletir numa eleição.
Gabriel Galli – Quais temas podem ser mais relevantes em 2020 em relação aos direitos de LGBTs? Um dos assuntos que já aparecem no radar é o projeto de criminalização da LGBTfobia, que está sendo negociado no Congresso Nacional. Há indícios de que haverá um salvo-conduto para que as igrejas não sejam punidas por discriminações.
Estamos vivendo um momento de reinvenção do próprio movimento. As principais agendas e pautas que foram construídas na trajetória do movimento LGBT, ao menos formalmente, conseguiram uma solução e uma acomodação na democracia brasileira. Tem um desafio fundamental em relação aos direitos no Brasil, que é o fato de que sempre existe uma distância enorme entre o que é a realidade o que quer a norma. Há uma distância muito grande entre o STF e o guarda da esquina. Para haver de fato um combate à LGBTfobia do ponto de vista da criminalização, precisará acontecer uma assimilação enorme que venha lá de cima para baixo. Há uma batalha enorme para que as pessoas trans saibam e tenham condições e acesso a um processo de mudança do prenome e do gênero nos seus documentos. A mesma coisa em relação aos casamentos, que as pessoas entendam que possam casar. É um processo de consciência de direito mesmo. Em uma sociedade profundamente desigual e violenta como a brasileira, essa economia política dos direitos é muito difícil. Conquistar o direito não é suficiente, é preciso uma luta ainda maior para conseguir dar conta do exercício desse direito e atingir as pessoas para que elas se apropriem disso. Essa é uma questão que vem aí com força.
A criminalização não foi um ponto de chegada, era um ponto de partida. Eu sempre dizia que essa decisão não vai fazer diminuir a violência, não tem efeito automático. A violência contra a população LGBT no Brasil é gritante e não tem como não ser o cerne da agenda do movimento. Vai ter muito embate associado a essa decisão ainda, como esse projeto que você menciona, no Congresso. Ele toca numa questão central de setores conservadores, que é o que eles entendem como a liberdade de religião deles, mas que na verdade é a liberdade de ódio, que não tem a ver com religião, mas que eles entendem que tem. Essa deve ser uma disputa muito grande.
Agora, o movimento precisa repensar suas agendas. Nos colamos muito nessas pautas institucionais. Elas foram importantes, são republicanas, são pautas de igualdade. Mas ao mesmo tempo, são em alguma medida pautas conservadoras. Elas reafirmam certos paradigmas do que é família e do que é a família socialmente aceita, se formos pensar no casamento, por exemplo, ou no caso da decisão sobre identidade de gênero, que reafirma o binarismo e só serve para pessoas trans binárias. Outros tipos de identidades não estão abrangidas nisso, precisam se enquadrar no masculino e no feminino. É importante que o movimento discuta os limites dessas decisões. São avanços duramente conquistados, mas estão pautados num discurso muitas vezes essencialista, de naturalização, familista, que são muito problemáticos e limitados do ponto de vista de uma emancipação sexual e de gênero que ainda está pendente. A mesma coisa em relação à criminalização, é preciso entender o limite do direito penal e fazer uma crítica ao que é o sistema punitivo na nossa sociedade. Estamos em um momento de populismo penal e, por mais que eu tenha defendido a criminalização, entendo que o movimento precisa fazer uma crítica ao sistema de Justiça no Brasil. Sem a democratização e maior representatividade no sistema de Justiça, não há possibilidade de construção de direitos no Brasil. 
É preciso que essas novas lideranças e a juventude que tem cada vez mais ocupado um papel de destaque, seja em redes sociais, seja em outras formas de produção de conhecimento e de ativismo numa perspectiva mais interseccional, também consigam verbalizar mais o que são essas pautas de agora. O movimento se fechou muito nas questões LGBTs nesses últimos tempos e essas pautas mais institucionais provocam um certo “emsimesmamento”. É um período em que o movimento vai ter que se abrir para entender a interseccionalidade, criar mais conexões com os movimentos feministas, negros e outros setores progressistas. É um momento de crise, mas em que tudo isso também está posto para ser reconstruído, então pode ser animador em relação às possibilidades de criação de novos modos de compreender e fazer política.
(*) Jornalista, mestre em Comunicação e ativista por direitos humanos . É fundador do grupo Freeda – Espaços de Diversidade, foi diretor do grupo SOMOS – Comunicação, Saúde e Sexualidade e trabalha como assessor na Câmara dos Deputados.

Créditos Sul 21 publicado originalmente em - https://www.sul21.com.br/colunas/gabriel-galli/2019/12/2020-sera-o-ano-em-que-lgbts-ocuparao-mais-espaco-na-politica-avalia-renan-quinalha/

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